A Neurociência, o Pistache e o Neuro Pedro
- Ana Carolina Souza

- 13 de nov.
- 6 min de leitura
Nem tudo que começa com “neuro” é Neurociência. Confira, neste artigo, um olhar crítico e bem-humorado sobre o uso excessivo do termo e a importância de ter senso crítico.

Nem tudo precisa ser explicado através das lentes da Neurociência. Tenho dúvidas reais de como essas construções se dão e tendo a validar aquelas que encontram respaldo na academia. Existem linhas de pesquisa sobre isso? é uma especialidade? Qual a consistência desses processos? Qual o diferencial de sua perspectiva que justifique a especialização?
Essa semana uma amiga enviou uma mensagem perguntando se eu já tinha ouvido falar de Neuroforesight. Disse que não. Li o conteúdo enviado e entendi como mais uma área de intersecção que surge entre a aplicabilidade do conhecimento neurocientífico e outra área de atuação já estabelecida, no caso, o futurismo. Não é a primeira nem a última vez que veremos esta intersecção acontecer, principalmente, porque a compreensão do comportamento humano se torna cada vez mais necessária para seguir gerando valor no mercado. Mas devemos tomar cuidado para não fazer com a Neurociência o mesmo que fizemos com o pistache.
Nem tudo fica bom com pistache. E nem tudo precisa ser explicado através das lentes da Neurociência. Tenho dúvidas reais de como essas construções se dão e tendo a validar aquelas que encontram respaldo na academia. Existem linhas de pesquisa sobre isso? é uma especialidade? Qual a consistência desses processos? Qual o diferencial de sua perspectiva que justifique a especialização? Tenho perguntas a serem respondidas que não se limitam ao Neuroforesight - esse termo que só serviu aqui de exemplo para um debate antigo que venho travando com outros neurocientistas.
Quando estava no doutorado, lembro de conversar com alguns amigos sobre as diferentes áreas de aplicação da Neurociência. Neuroética, Neuromarketing, Neuroliderança… em um dado momento, um colega mais cético disse: “Quando eu tiver um filho vou chamar de Neuro Pedro! Assim ele já sai na frente dos colegas.”
Ironias à parte, quando alguém me apresenta um termo novo, fico sempre na dúvida se é mais uma área de aplicação em Neurociência ou mais um Neuro Pedro. Um termo criado para chamar atenção e sair da frente!
E se eu, com 25 anos de experiência na área, tenho dúvidas…imagina você?!
E eu tenho inúmeras dúvidas.
Fico em dúvida até de qual seria o limite para essa distinção… até onde podemos considerar que a aplicação do conhecimento em Neurociência é (de fato) Neurociência?
Quando ela se afasta de sua própria definição e começa a servir de jargão ou isca, para representar o que talvez já fizesse parte da própria área a qual ela foi associada?
O que significa acrescentar “neuro” à equação?
Trabalho com Neurociência aplicada há muitos anos e me formei em áreas de intersecção (Neuroendocrinologia e Neuroimunologia). Então entenda, não sou contra a sua aplicabilidade ou a associação com outras áreas do saber. Considero tudo isso muito bem-vindo, mas minha referência sempre foi a academia, os grupos de pesquisa que desenvolveram essas linhas de conhecimento e validaram sua importância - ou seja, elas agregam valor e oferecem uma nova perspectiva, conhecimento.

Mas quando a Neuro vira pistache, tenho dúvida se os sabores estão sendo preparados por chefs especialistas, ou se alguém pegou a essência de pistache e o corante verde e misturou no docinho para fazer sucesso na festa. Pronto, tem pistache, tá na moda!
A Neuro tá na moda e eu tenho sentimentos ambivalentes em relação a este processo…
Acho ótimo ver a Neurociência ganhando espaço e relevância, mas fico confusa sobre a qualidade do que se oferece para o mercado. Quando trabalhava com Neuromarketing, mais de uma vez atendi clientes “traumatizados”. Grupos que haviam fechado as portas para a Neurociência, por terem se frustrado com consultores e prestadores de serviço que não souberam desenvolver pesquisas de qualidade - e por vezes nem usavam neurociência de fato, apenas falavam que usavam. Um desserviço para quem atua com neurociência, que só faz gerar preconceitos e prejudicar o mercado.
É como comer um docinho de pistache e concluir que todos os docinhos de pistache não prestam! Mas é que depende! Tem docinho bom e docinho ruim. A questão não é o pistache… é quem fez o docinho!
O lance é que assim como eu não sei dizer em que receitas fica bom usar pistache, a grande maioria dos clientes e consumidores deste tipo de serviço e conteúdo também não sabem dizer o que é Neurociência e nem validar a qualidade do que consomem.
Este artigo não é uma crítica ou avaliação de áreas que desconheço. Mas é um convite à reflexão, do que acontece com o uso compulsivo de termos da moda, quando há a constante necessidade de se diferenciar no mercado...
Temos um dilema. Dos grandes…
Não tenho solução, resposta ou a pretensão de dizer que estou certa sobre a provocação que trago aqui. Mas sei que outros especialistas em suas áreas, compartilham deste sentimento: A sensação de que tudo virou “Neurociência”, “Design Thinking”, “Futurologia”, “PREENCHA AQUI COM SUA ESPECIALIDADE”.
Se eu pudesse organizar o que, na minha opinião, significa trabalhar de forma responsável com Neurociência aplicada eu diria que envolve alguns pontos a serem observados:
Neurocientistas são cientistas. Cientistas constroem testes de hipótese e devem ser capazes de avaliar informações pré-existentes, criar perguntas (hipóteses), desenhar modelos para validar suas hipóteses, testá-las, analisar seus resultados e concluir o que observam a partir do entendimento que têm da realidade. Neurocientistas precisam ter pensamento científico e isso é inegociável.
Neurocientistas devem conhecer a fundo a fisiologia humana e o funcionamento do cérebro. Cada sistema tem uma lógica, o Sistema Nervoso tem a sua. Se um profissional atua com isso, deve ser capaz de explicar esses mecanismos e isso inclui os processos celulares, bioquímicos e moleculares que sustentam os aspectos comportamentais que discutimos de forma aplicada.
Existem várias áreas de atuação para Neurociência. Tem gente que trabalha com emoções, processos cognitivos, linguagem, sistemas, processos celulares, moleculares, anatomia… depende. Nem todo chef tem a mesma especialidade, mas eu sei que um patissier faz bem doces! Que tipo de aplicação você busca e que Neurocientista tem a especialização correta para te atender?
Experiência importa, também na Neurociência. Uma coisa é saber, outra bem diferente é fazer! E se tem algo que exige prática é a capacidade de lidar com a complexidade do comportamento humano. Gestão de mudança, desenvolvimento de habilidades, são aspectos que exigem conhecimento e experiência. O comportamento humano sempre traz um quê de imprevisibilidade e ser capaz de adaptar práticas e lidar com múltiplas variáveis aumenta as chances de sucesso no seu investimento.
Neurociência, Neurologia, Neurocirurgia, Psiquiatria, Psicologia, Psicanálise. Não é a mesma coisa. Estamos todos observando aspectos ligados ao comportamento e o sistema nervoso de alguma maneira, mas com lentes muito distintas. Devemos compreender e respeitar a expertise de cada profissional!
Grandes neurocientistas reconhecem o quanto ainda não sabemos sobre o cérebro. Desconfie de soluções simples para perguntas complexas. O cérebro e o comportamento humano são problemas complexos e eu duvido que alguém tenha uma solução mágica para suas dores - mas eu sei que no fundo você gostaria que ela existisse.
De novo, este artigo não é uma crítica ou avaliação de áreas que desconheço. Mas é um convite à reflexão, do que acontece com o uso compulsivo de termos da moda, quando há a constante necessidade de se diferenciar no mercado, quando somos pressionados continuamente para produzir conteúdo e quando o conhecimento cada dia mais se limita a um vídeo de um minuto e conteúdos de 280 caracteres.
Nem tudo que começa com “neuro” vai trazer bons resultados… mas você precisa aprender a avaliar a qualidade do que te servem. Atenção aos modismos, foco na consistência e na profundidade dos fornecedores e lembre-se de provar várias receitas! Assim você irá desenvolver senso crítico.
Quer conhecer a ótica da neurociência aplicada ao contexto organizacional? Fale com a nossa equipe por aqui e descubra como desenvolver líderes e equipes mais preparados para o futuro.
Um abraço e até a próxima 😉



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